O direito de ser infeliz
– Texto em construção –
Os problemas da liberdade e da felicidade, é que, em outras palavras, queremos fazer com que as pessoas amem a sua servidão e se tornem felizes aceitando o contrário do que elas amam e sonham, e assim, a sociedade vive tentando reconciliar o súdito com à sua escravidão.
Não somos gratos a quase nada, porque, em geral, o que temos é o oposto do que buscamos. Não percebemos que as melhores coisas do mundo são de graça, que as flores, a chuva e as paisagens, nasceram com o grave defeito de serem gratuitas, e por não custarem nada, não nos importamos com elas e nem lhes damos o devido valor.
O segredo da felicidade e da virtude, é que devemos amar a nossa missão e o nosso destino, aquilo que somos de alguma forma, obrigados a fazer. E esta é a finalidade sutil de todos os condicionamentos ocultos e espontâneos; fazer inconscientemente com que as pessoas amem o destino do qual não podem se escapar.
E esta psicologia atua ocultamente, todas as vezes que somos conclamados a agradecermos por tudo aquilo que nos acontecem, porque todos os acontecimentos atendem a propósitos e parecem ser rigorosamente para o bem, seja o que for, num mundo onde até a falta de sentido “tem sentido” e onde existem propósitos até para a falta de propósito segundo as lealdades invisíveis[1].
Assim, as pessoas vão se adaptando aos seus desconfortos, vão sendo silenciadas em seus desagrados, se acostumando com seus medos e pensamentos perigosos e se contagiam mutuamente se contentando com seus descontentamentos.
Elas vão se acomodando, assistem filmes de guerra, vão ao cinema se espantarem e assistirem sangue derramar enquanto comem cestas de pipoca, chocolates, balas e refrigerantes, chamam isto de diversão, mas na verdade é condicionamento, modelagem comportamental grosseira e mal temos consciência das razões para que fazemos isto.
Então podem acontecer duas coisas; ou elas vão adorar ver o sangue correr ou vão odiar pipocas, chocolates, balas ou refrigerantes, [as coisas boas da vida], ou vão ter problemas alimentares diante do que acontece quando associam a fúria e a violência à alimentação diante das telas.
Estamos abolindo ou extinguindo rapidamente as nossas lágrimas, o amor, a paz, a natureza, o clima e isto é perfeitamente compreensível diante dos nossos desentendimentos conosco e os movimentos de guerra contra a nossa própria espécie.
Na verdade, as pessoas vão sendo padronizadas pelos diagnósticos, pelos condicionamentos, por suas crenças hipnopédicamente instaladas, pelas drogas e os medicamentos, e vão se tornando cada vez mais iguais. E nesse “Admirável mundo novo”, as teorias vão nos tratando como se fossemos todos iguais. Vestimos as mesmas marcas, os nossos cabelos têm as mesmas cores, gostamos das mesmas comidas, das mesmas artes e das mesmas músicas.
Em algum nível devem existir os padronizadores e os predestinadores que escolhem o nosso destino e fatalizam a nossa história. Na verdade, é muito mais fácil governarmos um mundo de seres iguais onde todos são padronizados e gostam ou rejeitam as mesmas coisas ao mesmo tempo.
Seria muito importante localizarmos em nossos meios quais são estes nossos predestinadores invisíveis que se encarregam da construção de uma sociedade robotizada e adestrada.
O espírito humano, desde criança, está inserido num mar de sugestões hipnóticas e essas coisas são sugeridas hipnopédicamente[2] quando dormem com aparelhos eletrônicos nas orelhas, bombardeadas que são por sugestões querendo minimizar o sentido da vida.
Felizmente o espírito humano não é lá tão sugestionável e reage em busca de algum sentido, julgando, desejando, escolhendo e decidindo “entre as coisas” que lhe são sugeridas.
Não existe civilização sem estabilidade social e sem equalização das diferenças, e não existe estabilidade social sem um equilíbrio individual, e para tanto, acreditamos que temos que ser iguais, submetidos à uma espécie de cama de Procusto[3], cortados sob medida para sermos aquilo que temos que ser perante o sistema.
Vozes eletrônicas, aparentemente espaciais, mortas ou desencarnadas, ressoam por todos os lados, especialmente nos celulares e as nossas mentes estão cheias de coisas vazias e de informações inúteis.
A História foi se tornando uma farsa. Ela é uma construção inconsciente daquilo que os predestinadores ocultos desejam que ocorra. Escolhemos o que desejam que escolhamos, votamos em quem precisamos eleger para que a escravidão ocorra na medida certa, reivindicando a nossa automodelagem e a nossa infelicidade.
Reivindicamos a liberdade para sermos ineficientes, oprimidos e infelizes. Parece que quanto mais adaptados ao sofrimento e à miséria, mais felizes somos. Afinal, os predestinadores precisam da predestinação e dos predestinados, dos “sem-sentido”, num mundo cada vez mais sistêmico e onde cada um pertence a todos e onde todos estão a serviço de cada um.
Num mundo onde cada um “é de todos” e onde todos é de cada um, e todos pertencem a todos, as pessoas precisam ser promíscuas e a promiscuidade passou a ser uma lei. Ninguém é mais de ninguém, todos são de todos e mal podemos usufruir das nossas preferências individuais.
Neste cenário há muito tempo, alguns que não se sentiam assim, sentem-se agora inclinados à promiscuidade e à deslealdade, sentem-se vazias de si e são desleais. Sentem uma compulsão à promiscuidade para serem aceitos por todos, porque não são donos de si, num mundo que se dispõe de todos e precisa pertencer a todos, disse-me certa feita um paciente.
Até então eu sabia que todos éramos físico-química e biologicamente iguais, mas que o espírito humano é irrepetível e único no mundo, que todos vivem e trabalham por todos e para todos, e que, em certa medida ninguém é dono de si.
Não pertencemos a nós mesmos, assim como não nos pertence aquilo que possuímos. Não fomos nós que nos fizemos! Não podemos ter a jurisdição suprema sobre nós mesmos. Não sabemos nada sobre a vida e a morte, o futuro das nossas origens e destinos, e é por isto que vivemos dizendo que o futuro à Deus pertence.
Sequer compreendemos o que significa ser homem, o que é ser Deus, destino e liberdade! Mesmo assim, por ideologia, queremos defender e obrigar às pessoas a serem livres, queiram ou não queiram e abominamos a escravidão.
Não somos nossos próprios senhores, porque somos uma propriedade Universal. Não seria para nós mesmos um consolo e uma felicidade encararmos as coisas desse modo? Será que seriamos mais felizes se nos considerássemos nossos próprios donos e pertencentes a nós mesmos?
Na verdade, os que são jovens e prósperos podem acreditar nisso. Podem acreditar que é uma grande coisa serem capazes de conseguir tudo o que desejam, sendo livres e não dependendo de ninguém, não tendo que pensar em nada que não esteja ao alcance das suas vistas, dispensando as obrigações e as responsabilidades.
Não somos um bom negócio para nós mesmos, mas somos um nicho de mercado para o mundo, mas cada vez fica mais claro que um bom negócio para todos não é um bom negócio para ninguém.
Que bom não ter que orar e nem agradecer e nem nos consagrarmos incessantemente a nada, fazendo sempre a vontade de nós mesmos e não dos outros. Mas, com o passar do tempo, acabamos percebendo que parece que a independência não foi feita para o homem – que ele vive num estado antinatural de simbiose e de dependência onde todos são frágeis como bebês, e que um não vive sem o outro – que podemos nos satisfazermos por algum tempo, mas logo a insegurança renasce dentro de nós.
E por falar em predestinação, o dever é o dever, e não nos sentimos no direito de consultarmos as nossas preferências pessoais. Interesso-me pela verdade, gosto da ciência, mas elas são perigosas e se constituem uma ameaça e são um perigo público para o Sistema.
Não queremos mudar coisa alguma. Toda mudança é uma ameaça à estabilidade. Essa é outra razão que nos tornam pouco propensos a utilizarmos as invenções novas. Todas as descobertas são potencialmente subversivas e até mesmo a ciência deve, às vezes, ser tratada como um possível inimigo. Ela é perigosa, e devemos mantê-la cuidadosamente acorrentada e amordaçada.
Desde os nossos berços existe a luta imensa para a construção de uma a consciência de classe, que também é treinada e doutrinada. Trata-se de uma engenharia emocional que nunca se acaba, e a luta pela consciência de classe inviabiliza a ela mesma, porque temos que pensar segundo as cartilhas e aí ela deixa de ser consciência.
Ninguém tem obrigação nenhuma de ter consciência alguma de nada porque ela espontânea, natural e não obrigatória. Tanto a consciência, como a liberdade e a felicidade, podemos buscá-las, mas tê-las é praticamente um sonho.
Em meu caso, eu prefiro ser eu mesmo talvez com a minha própria consciência um pouco menor do que ter uma imensa consciência adestrada, treinada e imposta pelos outros, prefiro a minha própria felicidade um tanto infeliz, do que uma felicidade mais feliz que venha dos outros.
Sabemos quando o militante é limitado, assim que o vemos tentando “conscientizar” os outros e esta é a prova maior de que se trata de um ser alienado, sem leitura e sem interesse filosófico.
Não quero conforto. Quero Deus mesmo que ele não exista, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o meu direito de pecar e reivindicar a minha própria infelicidade.
Na verdade, a felicidade disponível tem sido paga. Custa muito caro ser feliz. Temos que pagar pelo bem, pela saúde e a beleza que são dispendiosas fortunas. Eu vivia encantado com a “verdade” e me interessava demais por ela, paguei uma fortuna para tê-la e já era tarde quando percebi que, na verdade, a verdade não existia.
Foi assim que eu optei para me servir da felicidade de todos, dos outros e não da minha. Pagamos um preço alto demais pela felicidade e pela verdade e nem sempre elas são entregues.
Tudo isto é nada, mas também sobre o nada podemos falar infinitas coisas e as coisas que falamos sobre o nada existem e são concretas, mas o nada em si mesmo sequer existe.
Se perdemos a confiança, quando as pessoas desconfiam de nós, acabamos também por desconfiarmos delas. A confiança e a desconfiança são lutas recíprocas. Se eu não confio no outro e o outro também não confia em mim, mesmo assim, sem lealdade e fé, continuaremos aqui para sermos úteis à sabe-se lá o quê, e podemos continuarmos sendo úteis até mesmo depois de mortos, por exemplo nos tornando adubo para o crescimento das plantas.
É muito fácil sermos úteis. Difícil mesmo é saber se somos amados ou somos úteis.
Infelizmente não somos livres, e vivendo assim num mundo onde todos se sentem livres e acham que podem fazer o que querem, resolvemos então produzir as leis, para de alguma forma impormos a justiça. Isto seria possível se não nos sentíssemos donos das coisas, mas fizemos as leis para transgredi-las.
Quando as leis viram ouro, são apropriadas e passam a nos pertencerem, as leis são daqueles que as fazem, e sendo nossas fazemos delas o que bem queremos, porque mal sabemos que para termos algumas coisas neste mundo e para que elas sejam realmente nossas, elas definitivamente não devem pertencer a ninguém.
José Carlos Vitor Gomes
Viçosa, 190125
[1] Lealdade invisíveis histórico-antropológicas da Psicologia Transgeracional e contextual de Ivan Boszormenyi-Nagy, meu ilustre professor.
[2] Recursos hipnopédicos, eram antigas práticas de hipnose, dos que punham gravadores debaixo do travesseiro enquanto dormia para aprender algo, por exemplo: línguas. Não temos hoje as fitas K7 e os gravadores antigos, mas dispomos de uma tempestade de telas que ficam ligadas, que a gente diz que não presta atenção, mas ouvimos e gravamos todas as mensagens soltas no ambiente.
[3] Conta-se que os viajantes deitavam na cama de Procusto, se fossem menores, eles eram esticados para terem o tamanho da cama. Se fossem maiores do que a cama, suas as pernas eram cerradas para terem o tamanho da mesma.