Matar para não Morrer
José Carlos Vitor Gomes, Psic.
Editora Psy
2023
Matar para não morrer
A morte não morre.
O passado não se deixa enterrar.
Os fantasmas não descansam nos túmulos enquanto
não encontram justiça.
Há algum tempo comecei a olhar para a necropolítica e as razões porque alguns se acham livres para decidir sobre a vida e a morte dos demais, e desta reflexão surgiu o livro “O direito de matar – Necropolítica” entendendo por ela, as decisões políticas para a promoção da morte.
Pensei sobre o abandono do povo, a falta de vacinas e de uma farmácia popular atuante, na fome e na falta de assistência, nos limites da educação e da segurança, em tudo que possa direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente destruir pessoas em políticas de morte.
Depois disto eu olhei por outro viés e peguei o lado oposto da mesma linha de pensamentos, pensando sobre “a autoescravatura”, me referindo ao povo que se sujeita e estas políticas, talvez devido a autoestima baixa, tendências suicidas e sadomasoquismos por não assumirem as lutas pela construção das mudanças.
Incomodava-me o fato de elegermos os nossos carcereiros, tiranos e abandonadores. Isto acontece, por vezes, pela falta de opções políticas, porém, achando que ainda ignoro tanto e tão profundamente estes assuntos infinitos e que nunca se esgotam, retorno intrigado com o armamentismo, com a postura agressiva e autodefensiva inerente ao ato de “matar para não morrer”.
De onde vem esta posição esdruxula e ingênua? Quando todos pensam assim, todos passam a ser alvos de todos, pois como refletíamos antes num outro momento e noutro lugar: “eu sou o outro dos outros e o outro dos outros seremos nós”.
Em se olhando a partir de numa perspectiva histórica, a crença de que devemos “matar para não morrer ou para sobrevivermos”, está origem pré-histórica da nossa cultura e serviu de base para a guerra pela sobrevivência da humanidade onde ela decreta o seu próprio fim.
Há cerca de três milhões de anos, o homem de Neandertal começava a inventar ferramentas feitas de pedras lascadas e de paus pontiagudos afiados para matar e dividirem a caça.
Foram encontrados fósseis em Turkana e noutras cidades quenianas, com sinais de que ali eram construídas as ferramentas cortantes com pedras afiadas para cortarem pedaços das caças, no que parecia serem “cursos” para as crianças daquele paraíso cercado de gente por todos lados, ensinando técnicas e rituais de caça e de morte, para a divisão dos cadáveres.
Nas longas estações chuvosas, eles comiam frutas, raízes e as folhas que serviam para a alimentação. Chegando a estiagem tudo secava e os animais herbívoros, fracos em pele e osso, famintos e morrendo de sede, vinham em busca d’água e ao se aproximarem da água se tornavam presas fáceis.
Não havia escolha. Eles morreriam de qualquer forma de fome e sede, ou caçados pelos oportunistas ao se aproximarem das nascentes e dos vales, lugares onde os piores felinos e os membros dos clãs – os piores de todos os felinos – se juntavam e se aproveitavam da vulnerabilidade daqueles que, no auge do desespero se rendiam à execução.
Durante a estação fértil e úmida, bastavam as frutas, a colheita e a pastagem que geralmente eram feitas pelos rebanhos, mas frequentemente o clima dificultava a vida de todos e matar era o último recurso para se viver.
A solução era matar para sobreviver, e foi assim, matando e comendo os seus mortos que o humano foi aprendendo a matar para viver, a se organizar em torno da morte, desenvolvendo técnicas para matar e se aprimorando na arte de assassinar.
A palavra açougue, vem do árabe “as-soq”, que queria dizer «mercado ou feira». Seu primeiro registro em língua portuguesa apareceu em 1254, como azougue, depois evoluiu para açougue em 1269 e pemanece até hoje como açougue.
Naquele tempo – em torno do ano 1300 d.C – as feiras vendiam basicamente carne, peixe, sal e algumas ferramentas simples para o meio rural, mas retornando à pre-história, a caça foi se tornando o foco e a base da organização familiar e as tribos se formavam onde caçar e pescar fosse fácil.
Não é por acaso que as cidades cresceram nas várzeas, às margens de rios e mananciais, o que hoje acaba sendo um problema social com a população sendo atingida por inundações e enchentes.
A caça acabou, mas continuamos a viver em torno das águas. As cidades cresceram em torno das águas, dos matadouros e dos açougues ou (feiras), das granjas e dos frigoríficos.
Por alguma razão, a morte fascina o homem que vive flertando com ela e se deliciando com o sangue que corre nas mídias. O homem se diverte com o terror e o sangue, o que se torna uma dessensibilização, um treino inconsciente para que nos acostumemos cada vez mais com a morte banalizada, que inevitavelmente vive entre nós e sem a qual, paradoxalmente não conseguimos viver.
Para que aqueles homens e mulheres com estatura de no máximo um metro e meio pudessem ter algum êxito na matança de búfalos, zebras, antílopes ou elefantes, eles desenvolveram uma espécie de inteligência caçadora e aprimoraram estratégias para compensarem seus limites físicos.
Os homens tinham a missão de matar e trabalhavam mais nas estações secas. As mulheres eram mais responsáveis pela missão de viver de cuidar da plantação, da colheita e os cuidados domésticos e trabalhando mais nas estações úmidas.
A média de vida girava em torno de no máximo 25 a 30 anos de idade, portanto, entre 12 e 15 anos idade, eles já podiam ser pais e estavam em pleno vigor criativo e sexual e chegavam a terem cerca de dez filhos ao longo da vida.
Os homens passaram a fabricar armas, aprenderam a afiar lascas de pedras, construíam lanças e flechas perfeitas para serem cravadas em suas presas para que não tivessem chances de se escaparem ou de sobreviverem.
Desenvolveram técnicas, armadilhas, iscas e estratégias para atraírem os animais em busca de alimento, para atingi-los e matá-los facilmente. Mortos, os animais eram esquartejados e dividido em quartos ou pedaços menores, enquanto na relva seca, outros animais esquálidos morriam de fome e sede apodrecendo disputados pelos abutres.
Na verdade, “matar para viver ou para não morrer” se tornou um paradigma e um estilo de vida para a aventura humana. O homem de Neandertal evoluiu a partir de 400 mil anos atrás e se extinguiu recentemente há cerca de 30 mil.
Este nome, “Neandertal” se deve ao local onde seus fósseis foram encontrados. “Neander” é um vale na Alemanha e “tal” tem a ver com a região, assim, “homem de Neandertal” significa “homens que viveram no vale de Neander”, Alemanha, dos quais surgiram os “Homo Sapiens” que apareceram há aproximadamente 15 mil anos e que agora somos nós.
Há cerca de 200 mil anos o homem de Neandertal já tinha eleito os animais como alimento e escravos. A necessidade da caça levou à formação de grupos de matadores organizados, para facilitar os ataques e o melhor uso das armas. O grupo tinha que ter um chefe caçador para matar, orientar os caçadores e dividir os resultados da caça.
Em um mundo sem caça, o ser humano não teria sobrevivido e nem construído a mesma história. A partilha dos animais, exigiu que eles aprendessem a afiar lascas de pedras, e daí surgiu a “era das pedras lascadas”, usadas como facas rudimentares para a divisão da carne, de acordo com o status e a posição social e cada um.
Entre os animais caçadores esta distribuição também não era aleatória assim como o salário dos nossos líderes, que são maiores do que os dos simples mortais. Um tigre imobiliza um búfalo mordendo a garganta, outros já estão comendo as tetas e rasgam a barriga do animal ainda vivo. Os mais fortes comiam os pernis traseiros, assim como hoje, as melhores partes são para os poderosos.
Os lobos dividem a caças segundo a força física dos caçadores. Os mais rápidos mordem as pernas dos animais em movimento enquanto os mais pesados correm ao lado. Enquanto os servos, tentando se escaparem, driblam e fazendo ziguezagues para a esquerda e a direita para se escaparem e mesmo assim, acabam correndo para a boca dos lobos.
A manada não se desfaz enquanto um animal é comido e seguem alternando seus rituais de domínio e submissão. Os lobos se dividem escolhendo as partes que têm direito e comendo a caça ainda viva, se organizando e expressando sinais de liderança em evasão, domínio e submissão. Todo grupo se organiza comendo as melhores partes enquanto os velhos, os fracos e os doentes lutam pelos ossos, as sobras e o lixo, exatamente, como ocorre hoje.
Entre os humanos, o animal caçado depois de limpo se torna meras partes funcionais. A gordura era usada para acender as lamparinas a partir do momento em que o homem aprendeu a usar e a dominar o fogo há cerca de 50 mil anos, na última era glacial ou na era do gelo, há menos de 30 mil anos.
Dos ossos maiores era retirado o tutano, uma iguaria do centro dos ossos. O couro dos grandes animais, era usado como depósito para guardar água, como roupas, calçados, cabrestos, arreios ou ainda para se fazer barbantes para colares, adereços com dentes, medalhas e as sandálias.
Os chifres, por vezes eram usados como instrumentos de sopro, peças afiadíssimas para matar rapidamente e instrumentos de corte. Os dentes perfurados podiam se formar lindos colares, amarrados com tiras de couro ou por pelos de elefantes, dos quais se faziam pulseiras e braceletes, além das penas das aves coloridas enfeitando os cabelos.
A nossa capacidade para as artes e a simbolização, fazia com que estes objetos praticamente falassem. Marcando status sociais, os seres enfeitados em geral tinham posições mais destacadas na sociedade, usando joias, cocares e colares de dentes e plumas que os destacavam entre os demais raramente enfeitados, como hoje são os uniformizados e os que se banham de lojas.
De certa forma, a domesticação de alguns animais inaugurou a era industrial, se vemos que durante o período neolítico, o homem tentava dominar completamente a natureza, criando uma nova ordem social e moral.
Para construir as pirâmides, foi necessária domesticação de milhares de homens para arrastarem e deslizarem pedras encima dos troncos das árvores deitadas ao solo como uma espécie de esteiras rolantes. Os cavalos faziam um trabalho equivalente a oito ou dez homens – e passaram a ser usados por serem mais fortes que os homens.
Aproveitavam para isto a força animal dos bois, dos cavalos e dos cachorros, usados como meios de transporte arrastando árvores e arando a terra para que as mulheres prantassem as lavouras.
A violência e a força física dos matadores constituíam um sistema socializador. As mulheres menos violentas e menos transgressoras, eram socializadas de outra maneira. Eram provedoras de alimentos, mais pacíficas, cultivavam as lavouras, demonstravam maior responsabilidade na providência de alimentos, e eram poupadas nas caçadas aos grandes animais eu nas construções.
Esta socialização não violenta garantia a sobrevivência de 30 a 50 por cento dos membros dos grupos, porém não lhes premiavam com a sensação de matar e caçar por ser um privilégio masculino. Em algumas culturas a mulher chegava a participar da caça, derrubando e prendendo os animais.
Entre os neandertais, os defeitos físicos femininos eram menos visíveis e as mulheres eram mais musculosas do que hoje, seus quadris eram menores e mais estreitos, o que facilitava a corrida, o lançamento de pedras e dardos, o que também explica suas participações em caçadas.
Porém, com o ato matar “o prestígio” do matador ficava maior, a ponto de não poder comer da presa que abatia, e ao compartilhar a caça com os membros do grupo, ele ganhava a admiração e reconhecimentos embora tivesse que ficar isolado.
Nos climas temperados, a mulher consumia mais alimentos vegetais do que os homens e nas estações mais difíceis, elas chegavam a participar das caçadas, distribuíam carnes e participavam das festas para a celebração da caçada.
Entre os índios Yanomonis, os primitivos do Canadá e os Wamba da África oriental, o caçador era admirado por sua força e pela capacidade para matar. Era mais admirado ainda por ser alguém que matava sem comer de sua caça.
A modéstia dos matadores fazia com que as mulheres quisessem cuidar deles preparando comidas especiais. Com as geadas e a seca, a alimentação vegetal ficava rara e a caça permitia a sobrevivência dos mais fracos. Quando a perseguição, a matança e a caça se tornavam meios de sobrevivência, a glória dos assassinos era tão grande que eclipsava a função nutritiva e socializadora das mulheres.
Quando o corpo dos animais se tornava meras ferramentas, os ossos eram agulhas e o couro se tornava linhas de costura ou roupas, os dentes e os marfins se tornavam joias, os esqueletos ganhavam um valor quase que meramente comercial e então eram organizadas as feiras de trocas com as tribos vizinhas. Os grupos não apenas comiam para matar a fome, mas também viajavam, compartilhando novas técnicas e enriquecendo a cultura.
Assim, “matar para viver ou para não morrer” se tornou a base da organização social que deu acesso ao mundo da arte e da linguagem, o que é um traço característico da condição humana.
Como artesões, eles passaram a construir ferramentas para lidarem com o mundo material, e surgiam novas palavras – que também eram ferramentas – ampliando a linguagem, facilitando a simbolização e já era possível tratarmos das coisas sem a presença material delas usando palavras.
Então cabe-nos uma pergunta sutil e perigosa: sobre como não admirar o homem violento que aparentemente faz a coisa certa matando para alimentar os outros, e afinal, isto também ainda acontece nas nossas vidas.
Quando as condições climáticas eram terríveis o homem se destacava na engenharia da violência e isto poderia acabar fazendo com que admirássemos os criminosos e os dominadores, dando legitimidade às relações de dominação, como se roubar ou matar para saciar a fome fosse algo aceitável.
Quando o clima voltava a ser suave e agradável, as relações de dominação assumiam o sentido de uma insuportável opressão que de fato não servia para nada (Cyrulnik, 2021.
O mal-estar da civilização
O tempo passou, o mundo evoluiu, mas parece que evoluir é seguir adiante deixando tudo como está e sem ao menos piorar. Recordo-me de Michel Foucault e especialmente de Freud em “O mal-estar da civilização” (1920), afirmando que evoluir não significa pacificar, pois o homem será a mesmo ser violento e movido por sua pulsão de morte.
O grande paradoxo está no fato da pulsão de morte ser acionada para manter a pulsão de vida. É a vida se alimentando da morte e a pulsão de vida nos pressionando a precisarmos da exploração e de nos alimentarmos do sacrifício e da morte de algo ou “dos nossos semelhantes” para vivermos.
Talvez esta seja a base inconsciente das necropolíticas. Porém, escapa-nos a percepção de que “o outro” pensa simetricamente a da mesma forma e para ele “o outro seremos nós”.
A tecnologia pode evoluir, mas o homem dificilmente deixará de ser agressivo, impulsivo, inadequado e por vezes até antiético.
Além dos sedentos e famintos que chegam para tomar água e morrem, hoje os animais ainda são domesticados e escravizados em troca d’água e da ração para aliviar as mesmas carências que existiam desde a idade da pedra.
Mais do que animais caçados, continuamos alvos dos nossos próprios ataques. A exploração do homem pelo homem sempre existiu, a ponto de nunca cessarem as suas lutas contra si mesmos e a sua própria espécie, com o diferencial de que evoluímos para sermos cada vez mais letais, cultos, inteligentes e bem armados.
Os peixes em águas artificiais são cuidados com o mais ardiloso amor dos caçadores. Nos currais, gados de todas as espécies são construídos a pouca distância do purgatório. Somos cegos para a frieza escravagista dos que amam e cuidam de tudo o que desejam usar, prender ou matar.
Aos olhares escapam a extensão da escravidão de todos os seres, dos nossos tantos confinamentos simbólicos, da hipnose e das seduções, da luta pelo roubo da liberdade, com uma aparência cada vez mais amorosa, como se fosse possível um sacrifício humanizado sem voltarmos aos horrores da Inquisição e dos campos de concentrações.
São as ilusões de alternativas que dão a impressão de que os direitos humanos e animais, e as democracias são possíveis e de que ainda existam legítimas possibilidades de escolhas.
A barbárie e os campos de concentrações estão ativos como sempre, mantidos pelos acionistas das trevas e do sangue que agora são commodities, pela lei da oferta e da procura que se aplica à vida, a moeda vermelha dos novos tempos e aos investimentos do Banco da Morte cuja moeda é o “$angue”.
Os rios em cujas margens os animais morriam, hoje poderia ser o nosso emprego cujas vagas são disputadas a caça pelas hienas e os leões.
A necropolítica e as políticas da morte investem na truculência, sabendo que os miseráveis, como os animais famintos, são os reféns da miséria, vivem das migalhas das mesas e lambe os ossos que sobram dos banquetes milionários.
Estamos na era de todas as eras, somos os mesmos “bárbaros” nobres seres bárbaros de todos os tempos, contemplando os vales da esperança em busca de um sentido que falta para tudo isto.
Bibliografia
Cyrulnik, Boris; Psicoecologia – El entorno y las estaciones del alma, Gedisa, 2020.
Foucault, Michel; Vigiar e punir, Vozes, 2010.
Franco, Fábio L.; Governar os mortos, Ed. UBU, 2021
Freud, Sigmund; O mal-estar da civilização, Cia das Letras, 2005.
Gomes, J. C. V.; O direito de matar – Necropolítica, Ed. Psy. 2021.
Gomes, J. C. V.; A função dos mortos, Ed. Psy, 2022.
Gomes, J. C. V.; O caçador de si mesmo, Ed. Novo
Século, 2016.
Mbembe, Achille; Necropolítica, Ed. M-1, 2020.
Nietzsche, F.; Obras completas, diversas editoras.
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