Freud, a psicoterapia e a cura gay
Pacientes e amigos perguntam sobre o nosso posicionamento diante da controvertida questão da “cura gay”, como se o normal fosse ser hétero, quando, na verdade, entre os héteros acontecem muito mais loucuras e desavenças, muito mais conflitos neuróticos e psicóticos da pior gravidade, até porque os héteros ainda correspondem à maior parte da população e dos relacionamentos. Assim, tenho afirmado que “devemos curar antes de mais nada os héteros que agridem, que estupram e que matam” e a Lei Maria da Penha precisa ser utilizada também na defesa dos homossexuais.
Afinal de contas há um equívoco na compreensão do que são as psicoterapias e do que elas se propõem a fazer, quando cada vez mais recebemos clientes que procuram terapias para continuarem felizes como já o são, para desenvolver potencialidades e, às vezes, estas buscam estão centradas na manutenção da felicidade desfrutada por tantos homossexuais. Muitos recorrem a uma variedade de psicoterapias novas, por exemplo, alinhadas com as “psicoterapias positivas”, quando o foco está voltado para a “solução” do que para o “problema”, para o desenvolvimento das boas qualidades, dos traços de saúde e daquilo o ser humano tem de mais extraordinário; uma vida alegre, positiva e feliz.
Já no ano de 1935, a psicanálise era uma ciência bem reconhecidas e Sigmund Freud respondeu carta de uma mãe preocupada com seu filho que era gay. Ela tinha vergonha e não mencionava diretamente a razão da sua preocupação, mas a resposta do criador da psicanálise era implacável e deixava claro que ele “Freud” não acreditava que a homossexualidade fosse uma doença, e portando, é claro, não havia nela o que ser curado. Sua crença era de que todas as pessoas nascem bissexuais e a orientação sexual vai sendo definida mais adiante na medida em que vivemos e fazemos as nossas escolhas.
Todas as pessoas estão certas sendo aquilo que elas são, porque são únicas no mundo a serem como são e o mundo precisa delas exatamente como se desenharam por si mesmas.
Freud menciona vários gays célebres, como Platão, Michelangelo e Leonardo Da Vinci, e garante àquela mãe que “seria uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como crime – além de ser uma crueldade. Se você não acredita em mim, leia os livros de Havelock Ellis”, médico e psicólogo britânico que viveu entre 1859 e 1939, que estudou profundamente a sexualidade e foi coautor do primeiro livro sobre homossexualidade do mundo, publicado em 1897.
A carta histórica de Sigmund Freud chegou às mãos de Alfred Kinsey, sexólogo americano que viveu entre os anos 1884 e 1956, e que foi responsável por um estudo inédito sobre Os comportamentos homossexuais masculinos em 1948 e posteriormente sobre Os comportamentos homossexuais femininos e 1953. Estes estudos foram publicados em 1951 no Jornal Americano de Psiquiatria de onde vários trechos foram destacados e citados em diversos estudos sobre a sexualidade humana.
Mas para voltarmos ao Dr. Freud e à íntegra da carta do criador da psicanálise, que foi, como de costume, elegantemente escrita à mão e que está exposta no Museu de Sexologia e no Museu Sigmund Freud, ambos em Londres, vejamos:
“Cara Sra. [Omite-se o nome],
Vejo pela sua carta que seu filho é homossexual. Estou muito impressionado com o fato de você não mencionar o termo ao fornecer informações sobre ele. Posso perguntar por que você o evita? A homossexualidade não é certamente nenhuma vantagem, mas também não é nada do que se envergonhar, nenhum vício, nenhuma degradação. Ela não pode ser classificada como uma doença, mas uma variação da função sexual, produzida por uma certa interrupção no seu desenvolvimento sexual.
Muitos indivíduos altamente respeitáveis dos tempos antigos e modernos eram homossexuais, vários dos maiores homens, entre eles (Platão, Michelangelo, Leonardo da Vinci, etc.). É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como crime – além de ser uma imensa crueldade, mas se você não quiser acreditar em mim, leia os livros de Havelock Ellis.
Ao me perguntar se eu posso ajudar, você quer dizer, suponho, se posso abolir a homossexualidade e instaurar a “normalidade” da heterossexualidade em seu lugar. A resposta é que de maneira geral não podemos prometer tais resultados. Em determinados casos conseguimos despertar tendências heterossexuais reprimidas, que estão presentes em todos os homossexuais, mas na maioria dos casos não é mais possível. Trata-se de uma questão de traços individuais e também depende da idade da pessoa e por isto os resultados do tratamento não podem ser previstos.
O que a psicanálise pode fazer por seu filho é algo muito mais específico. Se ele é infeliz, neurótico, dilacerado por conflitos, inibido em sua vida social, a ela pode trazer harmonia, paz de espírito e eficiência, quer ele siga homossexual ou se modifique. Tanto faz. Se você se convencer de que ele deve fazer análise comigo – o que eu não espero que aconteça – ele terá de vir para Viena. Eu não tenho nenhuma intenção de sair daqui. No entanto, não esqueça de confirmar em sua resposta.
Atenciosamente seu com os melhores votos.
Freud
P.S. Não achei difícil entender a sua letra. Espero que você não ache complicado a minha, uma vez que o meu inglês ainda é um tanto complicado.
Estamos num momento em que alguns poderes, autoridades e instituições de maneira geral se atrevem a “definir” arbitrariamente o que é normal e o que doentio, mas a natureza não se preocupa com nada disto e segue o seu destino. Sobre tratar o não o deixar de tratar, isto é uma questão íntima de cada pessoa em particular, quando se sente incomodada e deseja “mudar”, tornando-se isto ou aquilo livremente.
O que importa de verdade é que uma boa psicoterapia, como dizia o velho e sábio Prof. Milton Erickson, é aquela que a gente cria sob demanda e que é cortada sob medida na grande alfaiataria da alma. “Como cada pessoa é única no mundo, também devemos inventar uma terapia única e exclusiva que responda aos anseios de cada pessoa”. Não devemos usar teorias como se fossem “camas de Procusto” e muito menos determinar por leis ou decretos o que é normal e o que é anormal e consequentemente cometermos a loucura desvairada de curar doenças que inventamos, mesmo porque, a loucura construída flui da cabeça dos seus inventores, e portanto, é um mal que não existe.