A FUNÇÃO DOS MORTOS
“A função dos mortos”, é uma das minhas reflexões que acabou se tornando um livro com este mesmo título, buscando lidar um pouco com a falta de uma “Psicologia da morte” e de uma “Educação para a morte”, diante da indiferença, do abandono, do descuido e dos preconceitos da Psicologia em relação à morte e aos mortos, apesar do momento tenebroso em que vivemos e onde os mortos estão mais vivos do que nunca e da morte e o luto invadirem os nossos corações a todo momento.
Entendo que trazer um tema como este possa causa a impressão de que se trata de uma excentricidade. Como se eu não fosse uma pessoa ocupada, e sem ter o que fazer, tivesse me decidido por fazer “um desvio” literário para lidar com temas polêmicos.
Em primeiro lugar, este tema não consagraria ninguém à fama e nem traria um prêmio um Jabuti, nem um Politzer e muito menos
um Prêmio Nobel, assim, eu estou consciente de que se trata apenas de um trabalho despretensioso.
Na verdade, eu andava um pouco cansado de Psicologia que se esconde de alguns dos assuntos mais importantes. Aliás, se a morte não fosse uma questão central para os estudos da Psicologia, eu de fato nem sei porque ela existiria. De fato, não existe um tema mais ansiogênico e traumático para espécie humana do que as questões da vida e a morte.
Estamos diante de um planeta assolado pela devastação da pandemia, diante de Necropolítica e da petulância dos líderes analfabetos espirituais que se acham portadores do direito de matar, de decidirem sobre a vida e a morte com a maior facilidade, que optam quem vai morrer ou viver, quem pode ou não ter acesso à uma cama de UTI, a um respirador, às vacinas, aos medicamentos de alto-custo, à comida e a educação. Quem vai sobreviverá diante dos ataques do necropoder e de uma polícia descuidada e que mata?
Quem se escapará das balas perdidas?
Não se trata, portanto, de uma aventura literária e nem é coisa de quem não tem o que fazer, pois afinal, este tema não faria o menor sucesso literário e político de ninguém, e seria impossível se tornar famoso escrevendo sobre a morte e sobre os mortos. Aliás, a aridez dos preconceitos em torno do tema em questão podem ser a razão que faz com ele seja tão malvisto, tão rejeitado e abandonado, como se a morte causada e prematura e os assassinatos não fossem os nossos maiores problemas.
Não estamos ingenuamente pensando que a morte precisa ser a razão dos nossos pânicos e nem do desespero humano. Todos as criaturas nascem e morrem e isto é natural, perfeito e que bom que seja assim, especialmente quando se trata da morte natural e não-construída quando o ser morrente, se despede naturalmente, e morrem pela idade ou durante a soneca do meio da tarde.
Viver e morrer naturalmente é a melhor versão possível da vida e da morte, daqueles que têm a sorte de uma vida longa, de uma morte natural e rápida como dizem os poetas.
Mesmo a morte natural ou rápida, não importa, são as razões do desespero humano, porque o necrossistema já não sabe o que fazer com os seus mortos, porque eles se tonaram um estorvo para os vivos e a solução se resume na desova e a incineração, eliminando assim o desconforto da frente dos seus olhos.
No passado, quando eu morava no meio rural, os mortos eram velados em casa, onde eram feitas as orações, cultos e terços, chorávamos tudo o que tínhamos que ser chorado, porém o luto era bem purgado. Cumpríamos com o ritual essencial para que a passagem fosse melhor elaborada.
A evolução da medicina não melhorou a saúde nem evoluímos tanto, mas os hospitais se tornaram o lugar da morte e dos mortos. Quando alguém morre, os corpos vão para os hospitais para serem maquiados e o encontro final já no velório e nos cemitérios, como se a sociedade quisesse se livrar da “batata quente”, enterrando ou incinerando o corpo mais rapidamente possível.
Os mortos foram expelidos, excluídos até porque não tinham mais importância para a sociedade nem para o sistema mortuário em particular. A sociedade aprendeu a ganhar com tudo o que acontece nela e arranca os últimos dólares dos seus mortos. O sistema funerário se tornou um imenso negócio, coisa que antes não acontecia, mas hoje, chegaram os boletos com a conta do cemitério e o sistema foi construindo o seu mal-estar
Causa-nos estranheza porque a morte e o morto como um negócio deveria ser um tema central da Psicologia, mas ao contrário, a gente não os vê, pelo menos agora (2021) a presença da Psicologia na questão da morte e dos mortos é nula e se restringe a algumas aulas sobre luto. Enquanto isto o terrível impacto do luto mundial e coletivo diante do susto da mortandade gerada pela pandemia em todo mundo e a agora morte nos pegava de surpresa.
Estávamos despreparados para lidarmos com as perdas de nós mesmos, ficamos ansiosos, deprimidos, tomados pelo pânico diante do luto mundial que agravava a situação e levando muitos ao suicídio, aos vícios, ao desespero e a tantas outras mortes que agravavam mais as nossas dores necropandêmicas.
O necrossistema sistema acabou tirando os mortos das nossas casas e das nossas vidas. Elegeu o hospital – que deveria ser o lugar da cura e da vida – como lugar da morte, dos mortos e do término da aventura humana. Para onde foram os que foram? Eu me pergunto, o que nosso sistema fez com os Mortos? Eles foram eliminados e cancelados e agora sem importância para a estrutura social, eles perderam o lugar que desfrutavam no mundo.
A relativa invisibilidade dos mortos e da morte, a negação das suas possibilidades numa sociedade cada vez mais agressiva, faz com que os mortos pareçam irreais e menos poderosos, mais fantasmagóricos do que nunca, e o trabalho de Hollywood tem sido o de construir a imagem dos mortos como fantasmas.
No passado, os nossos ancestrais precisavam dos mortos, mas nós os aposentamos a ponto de torná-los inúteis e não precisarmos deles para mais nada. Os nossos ancestrais “precisavam” dos mortos. Nós os julgamos dispensáveis, irrelevantes para as nossas vidas numa sociedade que se liberada da autoridade dos antepassados, que se orienta apenas para o futuro, e sequer nos damos conta de que seremos os futuros mortos.
A distância em relação aos mortos cresce cada vez mais, devido as nossas ilusões de eternidade. Estamos convencidos de que somos imortais. Corremos todos os riscos de uma sociedade fascinada pelas armas, que não se dá conta de que ela “se mata”, num sistema onde um está na mira do outro e onde ampliamos a nossa distância em relação aos mortos.
Temos medos irreais e não nos permitimos compreender as nossas relações com a morte. Aliás, onde estaria ela? Não o sabemos. Simplesmente não conseguimos percebê-la como algo interior e que vive dentro de nós, como se pudéssemos expulsá-la para fora e a assim fomos ficando literalmente obcecados pelos riscos das mortes acidentais, porém a morte não vem dos acidentes e nem está “lá fora” nos esperando no acaso, nos acidentes ou nas curvas perigosas da estrada.
As estatísticas mostram que apenas 5% de todas as mortes são causadas por acidentes e que, ao contrário, 95% de todas as mortes ocorrem por causas naturais.
Aprendemos a acreditar que as mortes por acidentes são mais frequentes e por alguma razão ficamos enamorados pelas mortes acidentais. Isto parece refletir as nossas falsas ideias de eternidade, porém, se nunca houvesse nenhum acidente para sempre nas nossas vidas, mesmo assim, todos nós morreremos um dia.
A atribuição da morte aos fatos acidentais, reforça as crenças de que a morte está num outro lugar e não dentro de nós, como se ela somente pudesse ocorrer por causas externas e internamente fossemos imortais, como se evitando os acidentes, a vida fosse definitiva, e assim desprezamos as probabilidades de uma eventual extinção espontânea e natural.
Na verdade, qualquer pessoa pode morrer por qualquer causa, por qualquer coisa e por outro lado, poderia morrer de repente e sem causa alguma. “Podemos sobreviver a quase tudo, quando temos um sentido para a vida”, lembra-nos Viktor Frankl se referindo à sua experiência nos campos de concentrações onde viveu.
Mais do que isto, para estudiosos como Julia Kovács, Kluber-Ross, Viktor Frankl, Herman Feifel e Robert Kastenbaum entre outros, há uma negligência nos currículos para a formação de psicólogos a ponto de não se oferecer qualquer preparo profissional adequado.
A morte continua sendo um tabu até para a Psicologia, onde as preocupações como ela são praticamente nulas e as contribuições
psicológicas para a tanatologia são praticamente inexistes, a exceção das reflexões de Freud em (Além do princípio do prazer), (Eros e Tânatos) e sobre o (Luto e melancolia). A Psicologia se comporta como se o homem não tivesse impulso de morte e não caminhasse para o seu fim cujo destino lhe é inescapável.
Viktor Frankl percebe isto com muita clareza na Segunda Guerra Mundial onde milhões de Judeus foram executados, e depois das perdas vieram os suicídios, a humilhação cotidiana dos campos de concentrações onde ele mesmo esteve, e ao observar as dinâmicas do dia a dia como prisioneiro, percebe que a morte e a finitude poderiam até trazer algum sentido de responsabilidade em relação ao tempo e à vida.
A psicologia parece não se preocupar com as questões tanatológicas e com morte, como se não fossem relevantes. Nunca tive uma aula sobre o tema durante o meu curso. Não temos visto ofertas de quase nada em relação à morte e o luto, com as demandas frente a pandemia, não existe senão raras iniciativas de poucos profissionais e nem literatura atualizada e disponível, o que reflete o desinteresse no preparo do profissional para lidar com a finitude da vida e o vazio existencial deixado pela morte.
Enquanto isto, a tanatologia em países em países como a Itália, faz parte do currículo para a preocupação dos profissionais e existe uma atenção em relação à morte e que é garantida inclusive por lei.
Em alguns países existem cuidados inclusive com cenas de filmes e novelas que possam estimular a morte e contam com um zelo no que se refere à divulgação de suicídios a través da mídia,
especialmente em relação às celebridades suicidas. Eles sabem que esta divulgação gera casos semelhantes na população identificada com aquele que se suicidou. Todos sabem que a mídia não é lugar para se discutir suicídio e não adiantam os “setembros amarelos” porque não produzirão resultados sem uma discussão profissionais sobre o tema, o que precisaria ser feito em sala de aula.
Sabem o que apontam os dados epidemiológicos que as mortes após uma viuvez podem ocorrerem em muito devido à supressão de funções o sistema imunológico daquele que ficou. O luto de idosos é mais complicado por se tratar da perda de pessoas de referência, pode levar a desequilíbrios, falências financeiras, solidão e doenças graves (eu mesmo passei por isto).
Existe o fenômeno do luto antecipatório que começou a ser percebido com as mulheres, que choravam as supostas perdas dos seus maridos nas guerras, e os idosos constituem o grupo com o maior índice de suicídios porque entram num vazio existencial pela falta do outro, em geral um falece e o outro pode segui-lo pouco tempo depois, conforme apontam vários estudos.
Por tudo isto eu resolvi fazer uma reflexão sobre a morte e a função dos mortos nas nossas vidas, aproveitando os avanços de algumas abordagens atuais sobre o tema, retomando a reflexão filosófica partir de Frankl, Heidegger e C. G. Jung e algumas metáforas importantes, na esperança de contribuir para uma aproximação em relação ao tema.
Gosto de lidar com estes temas novos e indigestos e faço isto desde a década de noventa quando comecei a semear ideias, especialmente sobre a Logoterapia e hipnose ericksoniana no
Brasil, além de muitos outros temas que me custaram um certo assassinatos políticos e absurdos que até hoje pago.
Retomei os pensamentos de James Hillman, William Blake e William James sobre o desejo humano de acreditar, C. G Jung e “O livro vermelho” além de “Os sete sermões dos mortos”. Foram anos de trabalho, com uma linha diferente em relação a este artigo que é mais empírico e espero que motive reflexões ainda melhores para que este tema seja resgatado sem tabus e com profundidade.