Porque fazemos o que fazemos?
Um amigo acabou de me encaminhar uma reflexão sobre a magia do processo de criação, segundo a opinião de Salman Rushdie, o escritor que se exilou na Inglaterra para fugir da perseguição do Islã após ter publicado nos anos oitenta o livro “Versos Satãnicos” que eu li assim que foi lançado.
Descreveu que o ato de criar é muito difícil porque não se trata de um processo racional e muito menos consciente. Você não consegue simplesmente escolher um assunto, descobrir como se escreve sobre ele e sair escrevendo a respeito.
Não é assim. Eu até gostaríamos que fosse, mas não o é. Aquele que cria, de certa forma também é criado por aquilo que cria. No caso de Rushdie e na maioria dos grandes escritores, parece que ao invés deles escolherem um assunto, são os assuntos que os escolhem. Os temas os selecionam e algo parece que os captura e os põem a lidar com aquilo que precisa ser lidado e parece que algo decide isto por nós em algum plano.
Entre um livro e outro, comenta, a gente pensa muitas coisas e as tantas formas de lidarmos com elas, e eventualmente acontece de uma ou outra ideia se alojar em nossa imaginação e retornarem ciclicamente e ficamos pensando mais detidamente sobre aquilo. A gente às vezes até se pergunta porque estamos pensando tanto sobre aquele tema. Porque algo insiste em permanecer em mim? Porque tenho tanto interesse sobre isto e não aquilo? E então procuramos descobrir as razões e por que esse processo não é lógico.
Eu percebi este movimento quando fui ficando mais velho e vejo que parece ser algo espiritual. Quando eu era jovem, ter uma arquitetura pré-determinada era muito importante para mim. Eu precisava pelo menos de um esqueleto para um livro ou para algo a ser escrito. A argamassa seria depois colocada lá, mas eu precisava de um esqueleto e não me sentia confortável escrevendo, a não ser, que eu já tivesse um esqueleto pré-determinado.
Agora é diferente. Penso que isto tenha a ver com, “colocar-me a disposição deste algo maior” que me captura, e apenas confiar neste algo e esperar, confiar nos meus “instintos”, na minha “intuição” e na minha alma parece ser chamada mais do que antes e então ela parece saber mais do que eu.
Assim, ultimamente eu tenho me colocado à disposição, eu apenas me sento e espero para ver o que há de fluir através de mim hoje. É claro que, às vezes, isto é um grande desperdício de tempo, porém, se você escreve continuamente e produz, por exemplo, 100 páginas e descobre que elas não tem a ver com você e tem que encontrar um caminho e refazê-las, isto é pior e faz você viver descartando aquilo que não lhe faz sentido.
Na verdade, Rushdie diz que até gosta da forma como isto se desenvolveu nele e então passou a confiar mais no meu processo espontâneo de criação e a apostar menos no planejamento das coisas a serem escritas ou criadas.
Nos últimos anos eu alterno os atendimentos clínicos com as coisas que gosto de escrever e sinto que isto, da mesma que se passa com Rushdie e comigo, temos que nos entregar àquilo que pede passagem e quer fluir através de nós.
Nos entregamos às ideias que nos capturam e já não há dúvidas que não somos nós que escolhemos um texto artístico, que pintamos um quadro ou compomos uma música, na verdade, são eles que nos elegem e nos escolhem, e isto nos tornam únicos e irrepetíveis no mundo, nos torna seres exclusivos, insubstituíveis e de certa forma confere um sentido para as nossas vidas.